Não faz muito tempo Ana Paula Valadão provocou uma polêmica
no meio evangélico ao se colocar de quatro no palco, durante um show em
Anápolis, e começar a andar tentando
imitar um leão. Enquanto isto, os membros da banda faziam gestos de “leão” ou
de olhos fechados e mãos erguidas “abençoavam” a plateia, que gritava em
delírio. O vídeo está no Yoube. Não quero voltar a este episódio, já tão
batido, mas usá-lo como gancho para entender o quadro maior.
Isto de se imitar animais no palco sob a "unção"
do Espírito Santo parece ter começado em 1995, na igreja do Aeroporto de
Toronto, famosa por ter sido o berço da “bênção do riso santo”. Escrevi um
artigo sobre isto em 1996. Naquele ano, um pastor chinês, líder das Igrejas
chinesas cantonesas de Vancouver, Canadá, durante o período de ministração na
Igreja do Aeroporto, começou a urrar como um leão. O pastor da Igreja, John
Arnott, estava ausente do país, e foi chamado às pressas de volta, para
resolver o problema. A liderança que havia ficado à frente da Igreja lhe disse
que entendiam que o comportamento bizarro do pastor chinês era do Espírito
Santo.
Arnott entrevistou o pastor chinês diante da congregação
durante uma reunião, e para surpresa de todos, ele caiu sobre as mãos e os pés,
e começou a rugir como um leão na plataforma, engatinhando de um lado para o
outro, e gritando "Deixem ir meu povo, deixem ir meu povo!". Ao
voltar ao normal, o pastor chinês explicou que durante anos seu povo tinha sido
iludido pelo dragão, mas agora o leão de Judá haveria de libertá-los. A igreja
irrompeu em gritos e aplausos de aprovação, e Arnott convenceu-se que aquilo
vinha realmente do Espírito de Deus. Isto acabou provocando o desligamento
desta igreja da sua denominação, a Vineyard Fellowship, que discordou que
aquilo vinha de Deus. Mas, parece que a moda pegou.
A partir daí, os sons de animais passaram a fazer parte da
"bênção de Toronto." Houve casos de pessoas rugindo como leão,
cantando como galo, piando como a águia, mugindo como o boi, e gritando gritos
de guerra como um guerreiro. Para Arnott, estes sons eram "profecias
encenadas", em que Deus fala uma palavra profética à Igreja através de
sons de animais. Arnott passou a admitir e a defender este comportamento como
parte do avivamento em andamento na Igreja do Aeroporto.
Acredito que o argumento para “profecias encenadas” ou “atos
proféticos” tão em voga hoje nos shows e cultos do movimento gospel e do
pentecostalismo sincrético é que, no passado, Deus mandou seus servos
transmitirem mensagens ao povo usando objetos e dramatizando a mensagem. Não é
difícil achar exemplos disto no Antigo Testamento. Deus mandou que Jeremias
atasse canzis (cangas) ao pescoço como símbolo do cativeiro do povo de Israel
(Jer 27:2); mandou que comprasse um cinto de linho e o enterrasse às margens do
Eufrates até que apodrecesse, como símbolo também da futura deportação dos
judeus para a Babilônia (Jer 13:1-11); determinou que ele comprasse uma botija
de barro e quebrasse na presença do povo, para simbolizar a mesma coisa (Jer
19:1-11). O Senhor mandou que Isaías andasse nú e descalço por três anos, como
símbolo do castigo de Deus contra o Egito e a Etiópia (Is 20:3-4). Há outros
exemplos demprofetas que poderiam ser citados.
No Novo Testamento, o único exemplo de um profeta falando a
Palavra de Deus e ilustrando-a com um ato simbólico é o do profeta Ágabo, que
usando um cinto, amarrou seus próprios pés e mãos para simbolizar a prisão de
Paulo (At 21:10-11).
Ao tentarmos entender a “teologia” dos atos proféticos da
Bíblia percebemos alguns traços comuns a todas as ocorrências.
- Elas foram determinadas a profetas de Deus, como Isaías e Jeremias, os quais foram levantados por Deus para profetizar sobre o futuro da nação de Israel e a vinda do Messias. Ou seja, tais atos tinham a ver com a história da salvação, o registro dos atos salvadores de Deus na história.
- Estes atos simbólicos ilustravam revelações diretas de Deus para o seu povo através dos profetas. No caso de Ágabo, tratava-se de uma revelação sobre a vida do apóstolo Paulo, homem inspirado por Deus, que o Senhor haveria de usar para escrever a maior parte do Novo Testamento. Portanto, a mensagem de todos aqueles atos proféticos se cumpriu literalmente, como os profetas disseram que haveria de acontecer.
- Sem revelação direta, infalível e inerrante da parte de Deus, não há atos simbólicos. Eles eram ilustrações destas revelações. Uma vez que não temos mais profetas e apóstolos, que eram os canais destas revelações infalíveis, não temos mais estes atos proféticos que acompanhavam ocasionalmente tais revelações.
- Nesta compreensão vai o autor de Hebreus, que relega ao passado aqueles modos de Deus falar ao seu povo. Agora, Deus nos fala pela sua dramatização maior e suprema, a encarnação em Jesus Cristo (Hb 1:1-3).
- Tanto assim, que os únicos atos simbólicos que o Senhor Jesus determinou ao seu povo, e cuja mensagem é fixa e imutável, foi que batizassem os discípulos com água e comessem pão e bebessem vinho em memória dele. Tais atos ilustram e simbolizam nossa união com o Salvador. Fora disto, não encontramos qualquer outra recomendação do uso de atos simbólicos para transmitir a mensagem do Senhor.
Portanto, para mim, estes “atos proféticos” atuais e
profecias encenadas nada mais são que uma tentativa inútil – para não ser
crítico demais - de imitar os profetas e apóstolos, na mesma linha destes que
hoje reivindicam, em vão, serem capazes de fazer a mesma coisa que aqueles
fizeram.
Após Deus ter se revelado em Jesus Cristo, ter estado entre
nós e transmitido ao vivo a sua Palavra, após os apóstolos terem registrado
esta mensagem de maneira infalível e suficiente nas Escrituras, pergunto qual a
necessidade de profecias encenadas e atos simbólicos para que Deus nos fale
através deles. Se alguém não entende a fala de Deus registrada claramente na
Bíblia vai entender através do simbolismo ambíguo de gestos e encenações de
gente que alega falar no nome dele? Sola Scriptura!
Postado por: Augustus Nicodemus em O Tempora O Mores!
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