No
palco, o cantor de rap se esgoela: Vocês estão sentindo a presença de
Deus? Então, digam amém!!. Ao meu lado, um casal de namorados (espero)
desmentindo a mais famosa lei da física, além da presença de Deus, deve
está sentindo outra coisa mais concreta. Este é o grande impasse da
industria gospel: é show ou é louvor? É diversão ou é adoração? E uma
atividade espiritual ou carnal? São compatíveis ou antagônicas? Poderiam
ser simultâneas e harmônicas ou simultâneas e contraditórias?
Didaticamente,
vamos tematizar estas possibilidades dentro das seguintes hipóteses: l.
Não é diversão, é adoração; 2. Não é adoração, é diversão; 3. Teologia
do igual mas separado ou junto mais diferente.
1. Não é diversão, é adoração.
Louvor
pode muito bem ser sintetizado em alegria. Quem disse que louvor
precisa ser chato, sombrio e sorumbático? Essa é a idéia da teologia
carrancuda medieval, basta lembrar que, neste período, o riso era
creditado como atividade de satanás. Louvor é a expressão da felicidade.
Da felicidade não apenas física, passageira, temporal, mas plena. Ora,
se posso – e devo – adorar a Deus com meu dinheiro, meus bens, meus
dons, minha casa, enfim, minha vida, por que, então, não poderia
adorá-lo com minha felicidade? Daí, que um show (pode-se questionar o
termo, mas esse não é o momento da uma avaliação lingüística) além da
possibilidade de louvar a Deus com minha voz, posso fazê-lo também com
pescoço, braços, mãos, pernas, pés – enfim, com o corpo em sua
totalidade. Aliás, o próprio espaço físico, antes ou depois usado para
outros fins, neste momento se transforma em espaço sacro. Nisso,
inclusive, estão todas as demandas acústicas, sonoras, estéticas,
logísticas e, por que não, econômicas. Tudo, sem excluir nenhum aspecto,
pode ser usado para a glória de Deus. Portanto, mesmo com a
possibilidade de que em algum momento o show pareça apenas diversão, não
é diversão, pois, a alegria é também para glória de Deus.
Ora,
há quinhentos anos também não se podia combinar louvor com trabalho,
mas Lutero e cia subverteram isso. A teologia reformada abençoa o
trabalho – sim, o trabalho físico – do carpinteiro, ferreiro, soldado,
tanto quanto o exercício litúrgico, sóbrio, compenetrado e sacro de um
sacerdote diante de Deus. Não existe uma atividade presunçosamente
espiritual, mais sagrada que outra, mas todas – todas mesmos –
atividades devem ser feitas para a glória de Deus.
2. Não é adoração, é diversão.
Deus
é espírito e sua adoração deve transcender ao tempo e ao espaço.
Dançar, pular, bater palmas, assobiar, gritar, tudo isso se reporta a
atividades do corpo dentro de uma espacialidade e uma temporalidade
determinado. Deus não está limitado, o louvor, portanto, transcende a
tudo isso.
Show
diz respeito a um grupo em busca de recursos financeiros e diversos
outros em busca de entretenimento. Junta-se, então, estas diferentes
demandas, dá-se uma lubrificada gospel neste arremedo de culto, com
algumas frases chavões, manifesta-se alguns chiliques espirituolóides e a
galera se esbalda no trenzinho, na paquera, na dança, e, na falta de
outro nome, chama-se isso de louvor!
Louvor
nasce na quietude da alma reconhecendo sua finitude diante majestade e
santidade de Deus; passa fundamentalmente por uma postura de
arrependimento de pecados, confissão e quietude. Como, então, isso seria
possível em um ambiente barulhento, cheios de refletores e com canhões
de luz, estroboscópios, pessoas entrando e saindo, bebendo
refrigerantes, dando gargalhadas, apreciando o visual incrementado uns
dos outros e, sobretudo dançando, dançando muito. Isto pode ser
diversão, entretenimento, hobby, atividade lúdica ou, dirão alguns,
carnalidade, menos adoração.
3. Teologia do igual mais separado, junto mais diferente. Ou o samba do teólogo doido.
A
despeito das posições anteriores antagônicas, simplistas e radicais
poderia existir uma posição intermediária? Uma tentativa de conciliação
entre adoração e diversão, dando uma seriedade na última e um pouco de
leveza na primeira? Seria possível relativisar os pontos anteriores e
conseguir um meio termo? Talvez. Quem quiser que tente. Mas, ao meu ver,
ao se tentar fazer as duas coisas simultaneamente, conseguiu-se uma
proeza: errar nas duas.
Simples,
ao adorar se divertindo ou se divertir louvando, se piorou ambas.
Faz-se um louvor avacalhado e uma diversão encabulada; um louvor
artificial e uma diversão culpada. A dita adoração é comercial,
pasteurizada, genérica e repetitiva do tipo: diga aleluia, bata palma
para Jesus, dê um sorriso para seu vizinho, cumprimente o da esquerda,
enfim, clichê. E é bom gritar desde o primeiro momento, pois o doublé de
levita (sic) no palco, vai insistir perguntando se você está sentindo a
presença de Deus. E você, compulsoriamente, terá de sentir, afinal,
pagou o ingresso pra quê?
Adoração
tem seu espaço, mas diversão também. Mas não precisamos viver
patologicamente nessa ânsia de “louvar” em todas as atividades, pois
devemos realizá-las naturalmente, como seres humanos normais, sem o
ranço da religiosidade, até porque os propalados “louvorsões” são apenas
exercício religioso mal feito para muitos, e lucro para poucos. Aliás,
proliferou em nossa época uma imoralíssima indústria da “adora$ão”. O
slogan é “uma geração de adoradores está nascendo”, e eu acrescento, uma
geração de adoradores ávida por consumir. Afinal, se chegou ao cúmulo
do cinismo em se produzir um cd com “As mais ungidas”. São mais ungidas
por que vendem mais, ou vendem mais por que são mais ungidas? E, nós
evangélicos, ainda temos o desplante de criticar a Igreja Católica por
vender indulgências e os cultos afro por cobrarem por suas oferendas. O
critério valorativo da industria do louvor é a caixa registradora.
A
industria gospel tem vergonha de se assumir como entretenimento, daí a
necessidade dessa pasteurizada na adoração. Por que crentes não podem se
reunir para se divertir? Realizar reuniões simplesmente para conversar,
brincar, desfrutar da leveza da vida? Ludicamente ouvir, ver, sentir,
cheirar e comer sem culpa? Louvar a Deus pela vida sem chavões,
esquemas, modelos, liturgias, obrigações, ranços. Maldosamente eu diria
que o mercado gospel precisa dessa camuflagem para poder vender seus
produtos para um curral domesticado. Vendendo o troço como “louvor”
pode-se fazer um trabalho amador, cobrar qualquer preço, produzir
qualquer ruindade, enfiar na goela da massa qualquer som, afinal basta
uma letrinha falando de Jesus.
Convidado
para uma festa de casamento, uma atividade pouco espiritual, Jesus não
ficou neuroticamente procurando espiritualizar a falta de vinho,
simplesmente foi lá e produziu mais. Ele não deveria ter usado seu tempo
e seus dons apenas para louvor a Deus? Entre estragar a festa com a
compulsória culpa religiosa, Jesus preferiu mais festa.
Em
um show recente em SP aconteceu o seguinte: horário da programação 20
horas, a atração do show entrou no palco mais de 23 horas, som com
problemas, anúncios mil, um revezamento de grupos e cantores para
enrolação do público com imensos intervalos com vídeos clips. Além da
aporrinhação forçosa dos cantores em exigirem que o público sentisse a
presença de Deus, depois de horas de show-embromação, mais de uma hora
de chuva no lado de fora, casa lotadíssima ainda com horário de
encerramento do metrô se aproximando. Mas era para louvor de Deus – e
benefício da conta dos produtores!
Enfim,
não é louvor por causa da irreverência domesticada, da avacalhação
festiva, da espiritualidade forçada, da artificialidade litúrgica, da
sensualidade subjacente, mas também não é diversão por causa da pobreza
amadora, da bandalheira irresponsável, da estética brega, do falso
moralismo culposo. Não consegue agradar a Deus nem aos consumidores.
Então é uma espécie de vela para Deus e outra para o diabo? Não, neste caso, ambas as velas estavam apagadas.
Autor: Gedeon Freire de Alencar - Diretor pedagógico do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos, mestre em ciência da religião e autor do livro “Protestantismo Tupiniquim. Hipóteses sobre a (não) contribuição protestante à cultura brasileira”, Ed. Arte Editorial.
Autor: Gedeon Freire de Alencar - Diretor pedagógico do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos, mestre em ciência da religião e autor do livro “Protestantismo Tupiniquim. Hipóteses sobre a (não) contribuição protestante à cultura brasileira”, Ed. Arte Editorial.
Via: [ Ministério Batista Beréia ]
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